Guia da Semana

Diego Ras, o criador do jogo Raccoo Venture, é um desenvolvedor solo brasileiro que embarcou em uma jornada de cinco anos para trazer sua visão à vida. Raccoo Venture, um jogo que mistura ideias fundamentais de collectathons clássicos, no estilo de Banjo-Kazooie e Crash Bandicoot, com algumas releituras provenientes do renascimento do gênero, como aquelas vistas em Super Mario 3D World (análise) e New Super Lucky’s Tale (olha só, também tem análise por aqui!).

Em dezembro de 2023, a QUByte publicou o título nas lojas digitais de PC, via Steam, Nintendo Switch, Xbox One, Xbox Series X|S, PlayStation 4 e PlayStation 5. Claro, Raccoo Venture também tem sua resenha no Pizza Fria.

Aqui, na forma textual, transcrevo as respostas de nossa conversa de forma livre. Contudo, se preferir, você pode ver Diego comentando cada um destes tópicos no vídeo. Nesta entrevista, ele compartilha sua experiência, motivações e os desafios que enfrentou ao longo do projeto até o lançamento, entre 2018 e 2023. O João Gabriel Marques me deu uma ajuda imprescindível na hora de revisar e de melhorar o texto. Por isso, meu muito obrigado!

Primeiros passos para criar um game

Diego começou a explorar o mundo do desenvolvimento de jogos durante a faculdade. Seu trabalho de conclusão de curso focado na criação de games foi o primeiro de muitos passos.

Mas foi pouco mais tarde, agora no mundo da publicidade, que ele começou a experimentar com gamificação e interatividade. Neste momento, teve seu primeiro contato com o finado Flash, que descreve como “a ferramenta de ouro da internet na época”. Eram outros tempos.

Sua verdadeira imersão no desenvolvimento de jogos começou quando entrou em um estúdio. Lá, ele teve a oportunidade de trabalhar em projetos interativos para eventos a pedido de empresas. Foi assim que teve o primeiro contato com Unity, aprofundando-se no motor gráfico e aprendendo mais sobre game design. Com o tempo, a ideia de desenvolver um título próprio amadureceu e Diego decidiu seguir seu próprio caminho. Desta forma, o desenvolvimento de Raccoo Venture teve início em 2018, enquanto ele equilibrava seu tempo entre fazer frilas para pagar as contas e criar o jogo. O resto, como sabemos, é o lançamento em dezembro de 2023.

Raccoo Venture jogando Nintendo 64
Raccoo Venture é uma ode aos clássicos plataformas 3D para Nintendo 64 e de PlayStation.
(Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

A motivação para criar um jogo de plataforma 3D old-school

Quando Diego colocou Raccoo Venture em acesso antecipado, o jogo ainda estava em sua forma mais crua. No entanto, o potencial da ideia só ficou claro com a reação positiva do vídeo de gameplay que postou no Facebook.

Sem nenhuma pretensão, ele subiu um vídeo que mostrava a premissa ainda inacabada, um mero projeto, apenas para mostrar que estava trabalhando em algo. Para sua surpresa, o vídeo recebeu centenas de curtidas e muitos comentários em poucas horas. Isso serviu de motivação para tocar o projeto mais a sério, levando-o a criar até um site e uma página na rede social para o jogo. A partir daí, ele começou a trabalhar com mais determinação.

Inspiração em jogos clássicos e o estilo de Raccoo Venture

Por um lado, Diego queria resgatar o sentimento lúdico de jogos do Nintendo 64, como Banjo-Kazooie, mas ele confessa que a maior influência para a criação do Raccoo Venture veio de Super Mario 3D World.

O criador destaca a “solução interessante” de câmera fixa do jogo da Nintendo: o cenário em três dimensões restringe a liberdade do jogador, evitando que se perca. Isso faz de Super Mario 3D World em um side scroller. Era o empurrão final para deixá-lo decidido a fazer algo parecido para outros consoles e PC.

Raccoo Venture: a evolução do projeto

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O título brasileiro foi feito por um só desenvolvedor.
(Imagem: Reprodução/Nintendo Switch)

Raccoo Venture passou por muitas mudanças desde o seu conceito inicial até a versão final. A comunidade teve um papel pra lá de importante durante o acesso antecipado: ela deu muito feedback a Diego. A troca de ideias com os jogadores foi além da resolução de problemas e bugs, pois ajudou a refinar e polir o jogo.

De lá pra cá, Ras fez várias mudanças que parecem pequenas, mas melhoraram a jogabilidade. Uma delas, por exemplo, é a opção auxiliar de pulos, uma sugestão que veio de jogadores de Crash Bandicoot. A ajuda consiste em desenhar um círculo amarelo debaixo do personagem e sobre o chão, servindo como uma espécie de guia em alto contraste. O refino foi o processo que mais demorou no desenvolvimento do jogo, já que as fases levavam um bom tempo para serem feitas e Diego queria garantir um fluxo intuitivo para o jogador em cada uma delas.

Primeira e última fases terminadas num processo criativo mutante

Diego recorda que a primeira fase que terminou foi a segunda do jogo. O nível 1-2 serve como um teste para tudo, um laboratório para as mecânicas presentes em Raccoo Venture, desde os quebra-cabeças até a interação com objetos e o nado do guaxinim. Serviu até mesmo para algumas coisas que não funcionaram e foram excluídas da versão final.

A última fase concluída foi a da batalha final – um feito peculiar, pois mistura confronto contra o vilão com plataforma ao longo do nível. O desafio aqui é diferente e muda tudo visto jogo a fora. Para o criador de Raccoo Venture, o intuito era proporcionar uma experiência épica e diferente para o jogador.

E como o processo criativo mudou! Trabalhar com lápis e papel era indispensável para ele, que sempre desenhava um rascunho antes para ter uma ideia do seu fluxo. Ras criou um padrão dividido em três momentos: exploração, combate com inimigos e quebra-cabeças. Tais momentos se intercalam para criar uma dinâmica para o jogador.

Diego Ras sempre começava seus processos com rascunhos no papel.(Imagem: Arquivo/Diego Ras)
Diego Ras sempre começava seu processo com rascunhos no papel.
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

Era sobre papel que as ideias dele vinham, se ramificavam em opções e viravam quebra-cabeças. No entanto, com o passar do tempo, ele percebeu que algumas coisas funcionavam bem no esboço, mas um leque de opções muito grande se abria quando colocadas no 3D, durante a fase de blocagem.

Durante a modelagem – a etapa de transformar rascunho na folha em escultura digital – e com o game em execução, ele começou a perceber detalhes como o movimento de câmera, lugares que poderiam esconder um item, trechos espaçosos ou apertados demais. Diego diz que rodar o esboço de Raccoo Venture era “a hora de sentir o jogo, de fazer o test drive”.

Assim, esse artifício passou a ser mais frequente. Ele passou a se preocupar menos com o papel e partia o quanto antes para a blocagem 3D, executando uma compilação para começar a andar, a jogar, a testar… E então começavam a surgir ideias!

É por isso que muitos detalhes de câmera dão dicas bem sutis sobre itens escondidos – algo que Diego só percebia durante os testes. Ele testava, mudava, testava de novo, mudava… “Até que ficasse redondinho”, como define. Dá pra entender por este resumo do fluxo porque a construção de cenários foi o processo mais demorado. Para o criador, quem fosse jogar deveria seguir um caminho intuitivo sem perceber que estava sendo guiada pela mão.

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Com o tempo, o criador percebeu que podia fazer rascunhos menores e partir para testes e melhorias
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

Diego acompanhava streamers testando Raccoo Venture ainda durante o desenvolvimento, observando atento e anotando os comentários para melhorar seu game. Ele usou várias técnicas para atrair a atenção do jogador, como, por exemplo, esconder algo no lado esquerdo e deixar um chamariz bem à mostra no sentido oposto.

Sem contar que desenvolvedor não queria ter tutoriais. Na verdade, o jogo tinha que ser uma experiência de constantes descobertas, nas quais os jogadores teriam que entender o que estão fazendo. A intenção era trazer um pouco da essência do primeiro Super Mario Bros., lá do Nintendinho: o jogador aprende a jogar de forma empírica, não por meio de instruções explícitas.

“Quando o jogador descobre por si mesmo o que algo faz, é um momento de eureca.” – Ras sintetiza seu objetivo – “o jogador trabalhar um pouco a cabeça, trabalhar um pouco o raciocínio e descobrir o que está acontecendo naquele cenário”. O tempo investido para fazer o fluxo funcionar valeu a pena e ele se diz satisfeito com o resultado.

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E o resultado valeu a pena – o level design de Raccoo Venture è um trunfo.
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

Com uma pequena ajuda dos meus amigos: Lukan Peixe e os temas musicais

Diego conheceu Lukan Peixe através do canal The Gamer Inside Brasil enquanto promovia Raccoo Venture. Ao descobrir que Lukan era músico, Diego foi ouvir uma de suas composições na internet e ficou impressionado: “É isso aí que eu tava procurando!” – comentou, enfatizando que compartilhavam da mesma sintonia para música de games e o mesmo gosto pelos títulos clássicos. Uma ótima coincidência!

O processo de composição era mais ou menos assim: Diego passava para Lukan o que seria necessário. Quando tinha material novo, enviava para Lukan um vídeo ou até uma build exclusiva do jogo. Mesmo para as fases finais, que ainda não estavam prontas, mas já com uma ideia de como seriam, era feito um esboço com algumas anotações a mais. Assim, começavam a trabalhar juntos na música.

No papel de mero diretor, isso segundo o próprio Diego, ele buscava vídeos de bandas no YouTube e mandava para Lukan uma mistura de heavy metal industrial com músicas de Donkey Kong como referência. Em seguida, era hora de ajustarem o tema para que se encaixasse na situação e no ambiente de Raccoo Venture.

Lukan Peixe disponibiliza a trilha sonora completa de Raccoo Venture em seu canal no YouTube.

Para o criador, a música deve funcionar para manter o jogador focado, pois “o foco do jogo é realmente a exploração”. Ele continua: “O jogador tem que sair caçando, procurando lugares, procurando brechas, procurando dicas da câmera, tudo. Portanto, a música tinha que funcionar de forma a manter o jogador no fluxo, calmo, para ter paciência para resolver as coisas.”

Por esta razão, as músicas não deveriam ser agitadas, salvo quando fossem temas de chefe. Nestes casos específicos, ele pediu a Lukan que todo tema de chefe deveria “ser um heavy metal, com pedal duplo e guitarra, para trazer aquela energia!”. E conclui: “A música tem um papel crucial nessas batalhas, especialmente na última, do último chefe. Nesse ponto, há uma quebra do padrão do jogo e a música é mais pesada, mais acelerada, para deixar o jogador tenso.”

Game design: Todos os caminhos levam a algum lugar

Na conversa comigo, Diego revela ainda que as peças de xadrez a serem encontradas nas fases seguem um padrão. Uma vez que estão numeradas na tela, o jogador sabe que elas estão em certa ordem e isso lhe permite começar a entender a mentalidade do desenvolvedor. No entanto, quando o jogador chega aos Sacis (um colecionável secretíssimo de Raccoo Venture), o desafio muda radicalmente de figura. “O Saci é realmente um desafio para quem quer se desafiar”, comenta.

A dificuldade ideal para Ras deveria ser intrínseca ao jogo. Assim, ele decidiu por uma abordagem de design que se adaptaria às escolhas do jogador.

Se a intenção for apenas “jogar de boa”, basta simplesmente passar de fase – que, no geral, são fáceis de passar. Quem quiser uma dificuldade um pouco acima, pode buscar todos os campos de tabuleiro de xadrez e as peças essenciais para avançar a novas áreas.

Um passo adiante seria fazer 100%, incluindo dezenas de roupas (antes opcionais) para o guaxinim. “E se ele termina o jogo e pensa: ‘Puxa, eu sou bom nesse jogo, eu quero um desafio maior’, então ele pode ir lá e procurar todos os Sacis.” – essa é a dificuldade mais alta do título segundo seu criador.

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Escolhas de design de Diego: todos os caminhos levam a algum lugar e dificuldade orgânica.
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

O foco estava em fazer a pessoa jogando se divertir e ser recompensada pela curiosidade, ser recompensada pelo seu esforço. Se o jogador saísse de um caminho “padrão” para outro, Diego queria uma recompensa lá. O desvio não deveria ser à toa. Esse era o seu empenho enquanto criava as fases.

Quando via alguém num streaming do jogo na época de desenvolvimento, e essa pessoa ia para algum lugar, ele pensava: “Puxa, precisa de uma recompensa”.

Então ele já anotava a melhoria. “Esse feedback do jogador é legal, do jogador pensar: ‘Ah! E se eu fizer tal coisa?’ E ele tem uma recompensa por aquela coisa. Então você começa a condicionar o jogador a fazer mais vezes. Você começa a estimular o jogador, a ser mais curioso, a explorar mais, a investigar mais e tentar mais coisas diferentes.” – ressalta.

Lidando com a recepção do público a Raccoo Venture e próximos passos

Diego tem gostado da recepção agora (ênfase no “agora”), especialmente porque as críticas sobre a dificuldade do jogo diminuíram. Ele está focado em entender quais polimentos e quais balanceamentos são necessários para tornar Raccoo Venture mais interessante.

Neste começo de 2024, seu foco está nas correções, nas tentativas de identificar o que precisa ser corrigido ou melhorado caso apareça algum bug que cause o jogo travar ou bloqueie a jogabilidade. Sem novidades sobre DLCs ou projetos futuros!

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Na blocagem ficava evidente quando inserir dicas sutis de câmera.
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

Como se desligar da sobrecarga ao trabalhar no jogo

Intervalos de descanso são fundamentais para todas as pessoas. Ao falarmos disso, o denominador comum que encontramos foram formas de expressão artística. Diego acredita que todo mundo deve ter algum tipo de hobby relacionado à arte, pois ela tem o poder de revigorar nossa alma e nossa mente. Ele comenta a importância de atividades artísticas em sua vida ao citar ser ilustrador, artista 3D, além de ter base em teatro, música (tocando à noite!)…

Quando está programando, por exemplo, e se sente sobrecarregado, ele se levanta, pega o violão e começa a tocar. Ele acredita que é importante ter algum tipo de “escape”, pois a mente precisa ter essa conexão criativa. Diego se declara um grande fã de música ao descrever a que a música “mistura a parte humana e a parte exata, pois é matemática e é sentimento”.

PizzaFria ARTIGO RaccooVenture 7 Raccoo Venture
O jogo só foi possível graças a software livre, como Blender e Unity.
(Imagem: Arquivo/Diego Ras)

A importância do software livre para criar um jogo indie no Brasil

Se não fosse pelo software gratuito, Diego acredita que não teria conseguido fazer Raccoo Venture. Ele trabalha com o Blender há muito tempo, “desde quando o Blender era motivo de chacota entre os artistas 3D”. Para a programação, ele usou o Visual Studio Code da Microsoft, que também é uma versão gratuita, mais reduzida e leve do Visual Studio. E, para compor o jogo, usou o motor gráfico Unity sem custos, apesar das polêmicas recentes sobre cobranças.

Essas três foram as principais ferramentas que ele usou para fazer tudo, desde texturas até animações. Ras deixa claro que, se fossem pagas, dificilmente teria conseguido tornar Raccoo Venture realidade.

Nesta entrevista, Diego Ras, o desenvolvedor solo por trás do jogo Raccoo Venture, compartilhou sua jornada de cinco anos criando o jogo. Ele falou sobre suas influências, o processo de desenvolvimento e a importância do feedback da comunidade, também destacou a importância dos softwares gratuitos que usou na criação do jogo e o papel da arte como escapismo do cotidiano. Na conversa, entendi sua paixão e dedicação por games ao ponto de criar um jogo que resgata o sentimento lúdico dos títulos (agora) clássicos, oferecendo ao mesmo tempo um desafio para os jogadores. Para um olhar mais aprofundado sobre o que Raccoo Venture se tornou, convido você à leitura da análise publicada no Pizza Fria.

Pizza Fria

Reviews, notícias e tudo sobre o mundo dos games

Por Carlos Maestre, Pizza Fria

Atualizado em 26 Fev 2024.