Cinema
Por Juliana Varella

“Branco Sai, Preto Fica” usa ficção científica para evidenciar os absurdos da segregação racial no Brasil

Filme de Adirley Queirós chega aos cinemas no dia 19 de março.

Marquim da Tropa interpreta ele mesmo no filme que mistura documentário e ficção (Divulgação)

Era noite e a festa estava cheia. De repente, a polícia invadiu, mandou “viados para um lado, putas para o outro” e “brancos para fora, pretos para dentro”. E atirou. A lembrança, nítida apesar da distância de mais de vinte anos, é narrada como uma radionovela por um dos protagonistas de “Branco Sai, Preto Fica”, filme de Adirley Queirós que estreia neste mês.

O longa mistura documentário e ficção (científica, pasmem) ao inserir personagens reais (Marquim da Tropa e Shockito) como atores de suas próprias histórias, levemente reinventadas. O primeiro é (interpreta?) um DJ de uma rádio pirata, amante de rap e soul, que conta suas aventuras entre as batidas de seus discos favoritos. Ele vive numa cadeira de rodas, desde que foi atingido na coluna durante a citada ação policial. O segundo, perdeu uma das pernas na mesma ocasião e hoje ajuda outras pessoas a lidarem com suas próteses mecânicas.

O diretor atenta (talvez excessivamente) a pequenas cenas cotidianas dos dois protagonistas, chamando a atenção às consequências duradouras de um ato impensado como um tiro numa boate. Mais de uma vez, por exemplo, o público é obrigado a observar a demora massacrante que é a transposição de uma escada por Marquim, a bordo de seu elevador caseiro.

Enquanto a câmera se ocupa de detalhes aparentemente irrelevantes, um cenário maior vai se construindo ao fundo, inicialmente embaçado e, aos poucos, mais nítido e complexo. Nesse Distrito Federal semi-ficcional, uma “polícia do bem-estar social” controla o fluxo por meio de passaportes e toques de recolher. Mas há uma reação a caminho – um plano bastante simbólico envolvendo uma bomba cultural apontada para Brasília.

Isso tudo já seria suficiente para render horas de discussão, mas Queirós vai ainda mais longe e apresenta um personagem do futuro, Dimas Cravalanças (Dilmar Durães). O enviado não é exatamente “futurista”, já que veste roupas comuns e viaja num contêiner. Além disso, sua presença nem parece ser notada pelos outros personagens, exceto por desenhos de Shockito, o que sugere que questionemos sua origem.

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Por outro lado, ele tem uma missão bem clara: reunir provas para que, no futuro, o Estado possa ser processado por crimes contra populações periféricas. Ao que tudo indica, há outras intrigas ocorrendo no seu tempo além dessa revanche, o que faz pensar – se não forem brancos contra negros ou o centro contra a periferia, serão outros grupos declarando guerra contra si.

“Branco Sai, Preto Fica” levou o principal prêmio do Festival de Brasília em 2014, surpreendendo o júri ao abordar um tema pesado de forma tão criativa. A obra, vale ressaltar, tem seus problemas, como a grande quantidade de cenas meramente contemplativas, sem função narrativa. Mesmo que a execução não seja perfeita, porém, é revigorante ver que os cineastas brasileiros finalmente estão se arriscando em perspectivas menos óbvias sobre os velhos problemas do país.

Por Juliana Varella

Atualizado em 12 Mar 2015.